Convenções internacionais assinadas pelo Brasil negam prescrição de crimes contra a humanidade, como tortura e desaparecimento forçado
Por Alvaro Britto
Pela primeira vez no Brasilm um agente da ditadura militar foi condenado por sequestro e desaparecimento de um militante político. A decisão foi da Justiça Federal de São Paulo, que, em junho desta ano, condenou o delegado aposentado do Dops conhecido como Carlinhos Metralha a 2 anos e 11 meses de prisão por sequestro e cárcere privado de Edgar de Aquino Duarte, desaparecido desde 1971.
Em março deste ano, o Tribunal Federal da 2ª Região (RJ e ES) já havia sinalizado no mesmo caminho ao determinar que a Justiça de Petrópolis abra processo contra um sargento acusado de sequestrar, manter em cárcere privado, torturar e estuprar em 1971 a militante Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da Casa da Morte – aparelho da repressão da ditadura localizado naquela cidade serrana fluminense. Etienne morreu em 2015.
Tanto a Justiça Federal paulista como o TRF-2 entenderam que a Lei da Anistia brasileira, de 1979, viola a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Estatuto de Roma, que estabelece que crimes contra a humanidade não são alcançados por prescrição ou anistia. O Brasil é signatário de ambos os tratados internacionais. Também foi utilizada como argumento a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que, em 2010, obrigou o Estado brasileiro a investigar e punir os culpados pelo desaparecimento de militantes políticos na Guerrilha do Araguaia, na década de 1970.
Lei da Anistia
A Lei da Anistia, no Brasil, é a denominação popular dada à Lei n° 6.683, sancionada pelo general João Batista Figueiredo em 28 de agosto de 1979, após uma ampla mobilização social, ainda durante a ditadura militar.
Na primeira metade dos anos 1970, surgiu o Movimento Feminino pela Anistia. Em 1978 foi criado, no Rio de Janeiro, o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), congregando várias entidades da sociedade civil, com sede na Associação Brasileira de Imprensa (ABI). A luta pela anistia aos presos e perseguidos políticos foi protagonizada por mulheres, estudantes, jornalistas e políticos de oposição. No Brasil e no exterior foram formados comitês que reuniam mães, esposas, filhos e amigos de presos políticos para defender uma anistia ampla, geral e irrestrita a todos os brasileiros exilados no período da repressão política.
A Lei de Anistia proposta pela ditadura militar foi uma das ações mais importantes na estratégia da ‘abertura’. Ela deveria permitir a volta dos exilados e liberar os presos que não tivessem cometido ‘crimes de sangue’, fazendo com que o sistema político-partidário os absorvesse. Em seu primeiro artigo, a lei anunciava a anistia aos crimes políticos e o polêmico nexo deles com os chamados ‘crimes correlatos’. Isso significava a possibilidade legal de anistiar torturadores e assassinos a serviço das forças de segurança.
Perdão a torturadores
Na época, a anistia aos agentes do Estado responsáveis por tortura e desaparecimento foi considerada inegociável pelos militares. Essa polêmica permanece. Enquanto, por um lado, os militares, a Advocacia Geral da União (AGU) e, em 2010, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) afirmam que a Lei de Anistia brasileira beneficia também os torturadores e demais agentes da ditadura (anistia "de dupla mão"); por outro lado, vários juristas e setores da sociedade discordam dessa interpretação.
Entidades de defesa dos direitos humanos, familiares de perseguidos políticos e a OAB apoiam a tese de que a Lei de Anistia não beneficiou os "agentes do Estado" que tenham praticado torturas e assassinatos na ditadura militar, afirmando que o texto da lei não diz isso, nem poderia dizer, já que o Brasil é signatário de diversos documentos da Organização das Nações Unidas (ONU), segundo os quais a tortura é um crime comum e imprescritível.
Para trazer mais informações e análises nesse importante debate, o Pavio Curto entrevistou três militantes de movimentos e entidades que lutaram contra a ditadura, pela anistia e a favor da punição aos torturadores.
Jornalista, vice-presidente da ABI, Cid Benjamin foi militante estudantil nos anos 1960, integrante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e participou da resistência armada contra a ditadura militar, tendo importante papel no sequestro do embaixador dos EUA Charles Elbrick, em 1969. Preso em abril de 1970 e torturado no DOI-Codi do Rio de Janeiro, foi trocado pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, também sequestrado pela resistência em junho de 1970. Cid viveu dez anos no exílio, morando na Argélia, Chile, Cuba e Suécia. Sua mãe, Iramaia Benjamin, foi uma das principais lideranças do Comitê pela Anistia no Rio de Janeiro
Segundo Cid Benjamin, “no Brasil a ditadura não foi derrubada e ela própria organizou a transição para democracia, diferente dos outros países do Cone Sul. Aqui, os militares colocaram limites que foram aceitos pelos governos civis, entre eles a não interferência no currículo de formação dos militares”.
“Não tenho sentimento de vingança nem revanche, mas no Brasil os torturadores e assassinos, e toda linha de comando, já que era política de Estado, deveriam sentar no bancos dos réus e serem julgados, não para apodrecer na cadeia, mas para a sociedade ter claro o que aconteceu e gerar anticorpos contra o autoritarismo, para evitar que se repita. Na África do Sul foi assim. Também é fundamental achar os restos mortais dos desaparecidos, que são casos em aberto que não podem ser encerrados. É uma dívida do Estado brasileiros com seus familiares”, afirmou o jornalista.
Professora, Marlene Fernandes participou do Comité de Luta pela Anistia e da Comissão da Verdade de Volta Redonda. Foi fundadora e primeira presidente do Sepe-VR e trabalhou na Escola de Formação do Sindicato dos Metalúrgicos da região.
Ela avaliou que “no atual contexto deste governo em que participam as forças responsáveis pela ditadura e tortura, estão no poder militares que não aceitaram uma anistia ampla e irrestrita nem que tivessem que pagar pelas suas violações dos direitos humanos. Esse grupo provoca resistência inclusive no STF frente a algo mais grave que estamos vivendo”.
“Dependerá da ação de setores de oposição progressista recolocar a questão da punição aos torturadores. Enquanto ela não acontecer, sempre estaremos em perigo. É fundamental colocar uma visão democrática nas Forças Armadas. É possível um salto qualitativo; daí a importância da retomada dessa bandeira para afastar de vez essas forças do comando do país para evitarmos o retrocesso”, defendeu Marlene.
Na opinião da professora, “a anistia foi negociada para os militares ficarem impunes. Eles precisam ir para o banco dos réus. A sociedade e a justiça precisam se colocar e aí o acordão de 1979 pode tomar novos rumos. O ‘partido militar’ voltou ao poder pelo voto e quer manter a impunidade da sua violação aos direitos humanos”.
Advogado, Wadih Damous foi presidente da OAB-RJ, da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB, tendo exercido entre 2015 e 2018 o mandato de deputado federal (PT-RJ).
“No Brasil, a ditadura acabou desenhando uma dimensão do futuro democracia pela qual os torturadores e assassinos não seriam punidos. A Nova República foi resultado de um pacto com os militares que não aceitam que seus agentes que praticaram esses crimes contra a humanidade sofram processo penal e sejam punidos. Infelizmente, o STF adotou a tese de prescrição dos crimes ao julgar a Adin da OAB em 2010”, declarou Wadih.
Ele considera importante “algumas decisões judiciais que vão no caminho contrário, reafirmando a imprescritibilidade dos chamados crimes contra a humanidade – tortura e desaparecimento forçado, por exemplo. Mas é cedo para dizer que é uma tendência, enquanto a decisão do STF estiver em vigor. A OAB, junto com outras entidades de direitos humanos, está buscando sensibilizar o STF para que reveja essa jurisprudência”.
“A anistia libertou vários companheiros presos e permitiu a volta dos exilados, mas ao mesmo tempo estendeu o perdão aos torturadores. Há o que comemorar, sim, mas essa parte da lei precisa ser combatida. É desafio para a luta. Não se pode anistiar quem praticou crimes contra a humanidade”, concluiu Wadih Damous.
Texto pontual e excelente.Afinal, o tempo está passando e este é um assunto que urge ser pautado.
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