segunda-feira, 31 de maio de 2021

Boiada passa na Câmara e deputados atropelam o licenciamento ambiental

Ilustração CRISTOVÃO VILLELA

POR ÁLVARO BRITTO

Você sabe. Para construir com segurança aquele puxadinho ou aquela meia água para abrigar alguém da família que aumentou, precisa regularizar a situação junto à prefeitura da sua cidade através de uma licença. 

Se por algum motivo tiver necessidade de uma poda drástica ou mesmo cortar uma árvore, precisará justificar e obter uma autorização do órgão ambiental local. Mesma coisa para construção próxima à margem de rios e lagoas ou de encostas. 

Exagero? Claro que não. O licenciamento ambiental parte do princípio que a natureza é um bem público e não privado e qualquer modificação tem impactos na vida do planeta. Portanto, toda obra ou empreendimento que interfira na natureza não pode ser decisão exclusiva do proprietário e sim do poder público, como representante do conjunto da sociedade. 

Há problemas? Com certeza. Nem sempre o poder público age em defesa do interesse público. Mas pelo menos nós temos instrumentos legais e institucionais para fiscalizá-lo, denunciá-lo e, como nós do Pavio Curto somos chegados, detoná-lo!


Grandes obras

Agora imagine uma grande obra ou empreendimento, como um hotel na floresta, um terminal portuário, uma hidrelétrica, uma indústria, um assentamento rural ou uma ponte sobre um rio. É óbvio que, em função do tamanho do impacto ambiental, precisa ser avaliada de forma muito criteriosa para obter uma licença. 

Ainda mais em uma época em que toda a humanidade – com raras exceções, como o governo negacionista brasileiro – compreende a encruzilhada em que está o nosso planeta, ameaçado pelo aquecimento global causado por um modelo capitalista predatório em que a natureza é utilizada como matéria-prima para exploração e acumulação. Daí a necessidade de muito mais rigor na concessão de licenciamentos ambientais. 

Acredite então. Foi justamente esse licenciamento ambiental que a maioria da Câmara dos Deputados resolveu flexibilizar ao aprovar, no dia 13 de maio, o texto principal do relatório do deputado Neri Geller (PP-MT) sobre o Projeto de Lei (PL) nº 3.729/2004, da Lei Geral do Licenciamento Ambiental. 

O PL restringe, enfraquece ou, em alguns casos, até extingue parte importante dos instrumentos de avaliação, prevenção e controle de impactos socioambientais de obras e atividades econômicas no país. Trata-se da pior e mais radical proposta já elaborada no Congresso sobre o assunto e que, na prática, torna o licenciamento convencional uma exceção, na avaliação da Frente Parlamentar Ambientalista, de pesquisadores e organizações da sociedade civil. 

Para eles, se transformado em lei, o projeto pode produzir recordes de desmatamento em série, em especial por eliminar restrições à destruição da floresta, em geral estimulada por grandes obras de infraestrutura na Amazônia, como estradas e hidrelétricas.


Entenda os principais problemas do PL 3.729/2004

1. Dispensa de licenciamento para agricultura, pecuária e silvicultura, além de mais 13 tipos de atividades com impactos ao meio ambiente.

2. Brecha para disputa entre estados e municípios, que poderão estabelecer regras de licenciamento menos rígidas do que as de outras unidades da federação para atrair empresas e investidores.

3. Licença autodeclaratória (LAC), emitida automaticamente sem análise prévia de órgão ambiental, passa a ser a regra. Na prática, torna o licenciamento exceção ao invés de regra.

4. Restrições à participação popular no licenciamento, inclusive das comunidades impactadas por empreendimentos.

5. Ameaça às Unidades de Conservação, Terras Indígenas não totalmente demarcadas (41% do total) e Territórios Quilombolas não titulados (87% do total), porque a análise dos impactos dos empreendimentos sobre essas áreas não será mais obrigatória.

6. Restrição à participação no licenciamento de órgãos como Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Funai, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Ministério da Agricultura e Ministério da Saúde.

7. Bancos e outras instituições que financiam os empreendimentos não terão mais nenhuma responsabilidade socioambiental, ou seja, caso haja danos ao meio ambiente ou tragédias, como a de Brumadinho, eles poderão dizer que não têm nada a ver com o problema.

8. O PL não trata de qualquer questão ligada às mudanças climáticas.


Conheça algumas avaliações sobre o PL

“O projeto, se também for aprovado no Senado, ainda mais sem a participação dos povos e comunidades impactados, constituirá frontal violação aos direitos constitucionais dos povos indígenas, especialmente de seus direitos territoriais. Seu objetivo é impor severos impactos às Terras Indígenas, assim como aos Territórios Quilombolas, Unidades de Conservação e áreas de proteção, bem como ao Patrimônio Histórico e Cultural, sem que sequer sejam objeto de avaliação de impacto ou de medidas de prevenção, mitigação e compensação”. 

Nota pública assinada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Coordenação de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), além de mais 24 redes e organizações. 


“É uma afronta à sociedade brasileira. O país no caos em que se encontra e os deputados aprovam um projeto que vai gerar insegurança jurídica, ampliar a destruição das florestas e as ameaças aos povos indígenas, quilombolas e Unidades de Conservação. Assistimos, hoje, a uma demonstração clara de que a maior parte dos deputados segue a cartilha do governo Bolsonaro e vê a pandemia como oportunidade para ‘passar a boiada’ e atender a interesses particulares e do agronegócio”. 

Luiza Lima, Greenpeace Brasil


“É a Lei do ‘Deslicenciamento’. Esse projeto instala no Brasil o autolicenciamento ambiental como regra. Para dar apenas um exemplo, dos dois mil empreendimentos sob licenciamento ambiental em curso na capital do Brasil, 1.990 passarão a ser autolicenciados a partir do primeiro dia de vigência da nova lei”.

 André Lima, Instituto Democracia e Sustentabilidade


“O texto aprovado é tão nefasto que, de uma só vez, põe em risco a Amazônia e demais biomas e os recursos hídricos, e ainda pode resultar na proliferação de tragédias como as ocorridas em Mariana e Brumadinho e no total descontrole de todas as formas de poluição, com prejuízos à vida e à qualidade de vida da população. Por fim, pode se transformar na maior ameaça da atualidade às áreas protegidas e aos povos tradicionais”.  Maurício Guetta, Instituto Socioambiental


“Com a aprovação da ‘Mãe de Todas as Boiadas’, a Câmara dos Deputados, sob a direção do deputado Arthur Lira, dá as mãos para o retrocesso e para a antipolítica ambiental do Governo Bolsonaro. É o texto da não licença, da licença autodeclaratória e do cheque em branco para o liberou geral. Implodiram com a principal ferramenta da Política Nacional do Meio Ambiente. Quem pagará a conta da degradação são os cidadãos brasileiros, que vão sustentar a opção daqueles que querem o lucro fácil, sem qualquer preocupação com a proteção do meio ambiente e com as futuras gerações. Judicialização e insegurança jurídica são o que eles terão como resposta”.

 Suely Araújo, Observatório do Clima


“O texto não considera a Avaliação Ambiental Estratégica, o Zoneamento Econômico Ecológico e a análise integrada de impactos e riscos, além de excluir o controle social dos princípios do licenciamento ambiental. Dessa forma, afeta diretamente as políticas públicas de recursos hídricos e unidades de conservação”.

 Malu Ribeiro, Fundação SOS Mata Atlântica


“O texto aprovado produzirá uma avalanche de problemas sociais e ambientais não avaliados e não mitigados por empreendimentos de significativo impacto ambiental. Os órgãos ambientais não terão condições de se manifestar a tempo, pois o prazo é impraticável, além de estarem sucateados e silenciados. Os parlamentares aprovaram um desastre que precisa ser revertido no Senado, ou no STF”.

 Alessandra Cardoso, Inesc


“Lamentável o desmonte do licenciamento ambiental. Um texto enviesado, discutido a portas fechadas com governo, ruralistas e industriais, que ignora o princípio da precaução e atropela os fundamentos do direito ambiental. É repleto de inconstitucionalidades e vai gerar enorme insegurança jurídica para os empreendedores. Liberar geral para depois responsabilizar é um contrassenso total, que o digam os povos e comunidades tradicionais impactados em todo o país, as vítimas de Brumadinho e Mariana”.

 Guilherme Eidt, ISPN.


Vamos detonar juntos esse PL?

O Projeto de Lei (PL) nº 3.729/2004 segue agora para o Senado. Se sofrer mudanças, volta a ser debatido na Câmara, mas apenas as alterações serão analisadas. Se for aprovado pelos senadores como está, segue para sanção presidencial. Por motivos óbvios, nada a esperar de positivo do presidente que não acredita em aquecimento global. 


Portanto, o caminho da nossa mobilização e pressão para barrar esse PL é o Senado Federal. Lembrando que vários senadores disputarão a reeleição e mesmo outros cargos no pleito de 2022.  Para conhecer e pressionar os senadores acesse: https://www25.senado.leg.br/web/senadores  e acompanhe o Pavio Curto nas redes sociais. 


Saiba como votaram os deputados federais do RJ

Contra o PL  - 10

Alessandro Molon (PSB-RJ) -votou Não

Benedita da Silva (PT-RJ) -votou Não

Chico D´Angelo (PDT-RJ) -votou Não

Clarissa Garotinho (PROS-RJ) -votou Não

David Miranda (PSOL-RJ) -votou Não
Glauber Braga (PSOL-RJ) -votou Não

Jandira Feghali (PCdoB-RJ) -votou Não

Marcelo Freixo (PSOL-RJ) -votou Não

Paulo Ramos (PDT-RJ) -votou Não

Rodrigo Maia (DEM-RJ) -votou Não


A favor do PL  - 28

Altineu Côrtes (PL-RJ) -votou Sim

Carlos Jordy (PSL-RJ) -votou Sim

Chiquinho Brazão (Avante-RJ) -votou Sim

Chris Tonietto (PSL-RJ) -votou Sim

Daniel Silveira (PSL-RJ) -votou Sim
Daniela Waguinho (MDB-RJ) -votou Sim

DelAntônioFurtado (PSL-RJ) -votou Sim 

Dr.Luiz Antonio Jr (PP-RJ) -votou Sim

Felício Laterça (PSL-RJ) -votou Sim

Gelson Azevedo (PL-RJ) -votou Sim

Gurgel (PSL-RJ) -votou Sim
Helio Lopes (PSL-RJ) -votou Sim

Hugo Leal (PSD-RJ) -votou Sim

Jorge Braz (Republican-RJ) -votou Sim

Juninho do Pneu (DEM-RJ) -votou Sim

Lourival Gomes (PSL-RJ) -votou Sim

Luiz Lima (PSL-RJ) -votou Sim
LuizAntônioCorrêa (PL-RJ) -votou Sim

Major Fabiana (PSL-RJ) -votou Sim

Márcio Labre (PSL-RJ) -votou Sim

Marcos Soares (DEM-RJ) -votou Sim

Otoni de Paula (PSC-RJ) -votou Sim

Paulo Ganime (Novo-RJ) -votou Sim

Professor Joziel (PSL-RJ) -votou Sim

Ricardo da Karol (PSC-RJ) -votou Sim

Rosangela Gomes (Republican-RJ) -votou Sim

Soraya Santos (PL-RJ) -votou Sim
Vinicius Farah (MDB-RJ) -votou Sim


Faltaram a votação -  8

Aureo Ribeiro (Solidaried-RJ) 

Christino Aureo (PP-RJ)
Flordelis (PSD-RJ)

Gutemberg Reis (MDB-RJ)

Otavio Leite (PSDB-RJ)
Pedro Augusto (PSD-RJ)

SóstenesCavalcante (DEM-RJ)

Talíria Petrone (PSOL-RJ)



Referências: Instituto Socioambiental (ISA); Observatório do Clima; Congresso em Foco


domingo, 30 de maio de 2021

Redução da montanha de escória da CSN ainda sem data para acontecer


Crédito de imagem/Arquivo Pessoal Adriana Vasconcelos, presidente da Comissão Ambiental Sul

 Por Gabrielle Granadeiro

Imagine morar em um lugar onde as plantas ficam sempre sujas, onde a faxina não dá vazão devido à poeira que vem pelo ar e onde a possibilidade de desenvolver problemas respiratórios é grande devido à poluição? Esta é a realidade dos moradores da cidade de Volta Redonda e, mais especificamente, dos de seis bairros que ficam próximos a uma montanha de escória criada pelos rejeitos da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). E o pior é que a situação não tem data para acabar, já que a empresa alegou ao Ministério Público Federal (MPF) dificuldades para reduzir a pilha.

Para quem mora na Cidade do Aço a situação não é nova, mas o caso ganhou relevância nacional após a reportagem do jornalista Francisco Edson Alves, do jornal O Dia, em 2018. Na ocasião, ele publicou uma série de reportagens com relatos dos moradores dos bairros mais afetados – São Luiz, Caieira, Brasilândia, Cailândia, Volta Grande, Santo Agostinho e Candelária – sobre a “convivência” com os rejeitos da produção de aço da cidade, depositada em um terreno a céu aberto da Brasilândia pela empresa Harsco Metals. Também mostrou que a proximidade da montanha – estimada em 30 metros de altura – com o Rio Paraíba do Sul é de menos de 50 metros, ainda que a lei determine que sejam pelo menos 100 metros.

“Em 2019, o MPF e a Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) proibiram a CSN de colocar mais escória e a obrigaram a retirar, eles tinham que tirar mais do que colocar, mas veio a pandemia e eles voltaram a depositar escória bem próximo às casas das pessoas. O advogado da associação de moradores daqui tentou entrar com uma ação no MPF, mas como já havia outra em curso, eles apenas incluíram o fato na ação anterior. Devem ter notificado a empresa, porque eles pararam”, comentou um morador do Volta Grande 4, que preferiu não se identificar.

A presidente da Comissão Ambiental Sul, Adriana Vasconcelos, que também vem acompanhando o caso, discorda sobre a paralisação: “Nunca pararam. Continua, principalmente durante a noite. Após as reportagens eles começaram a frear durante o dia, mas são toneladas e toneladas de escória. Quem mora perto escuta pelo menos uns 100 caminhões por noite”, denunciou Adriana, acrescentando que o depósito é ilegal: “A Licença de Operações definitiva que eles precisavam para funcionar, eles não obtiveram. Então estão há anos funcionando sem licença”.



Críticas ao Inea e ao Ibama

Além dos problemas com a poeira da escória e do risco de contaminação do Rio Paraíba do Sul, o morador do Volta Grande também denunciou desmatamento na área, para que coubessem mais rejeitos. O MPF informou que o Inea (Instituto Estadual do Ambiente) é o responsável por verificar a situação, mas o órgão parece não ter credibilidade junto a quem vive próximo à região.

“Abriram uma clareira próximo ao Volta Grande 4, acabaram desmatando. Criaram uma área verde com mato e plantas de médio porte, mas entraram com a retroescavadeira e começaram a abrir caminho para passar com caminhão. Já perdi a vontade de fazer contato com o Inea, porque eles fazem muita vista grossa. Agora pararam de movimentar, mas quando retomam são 3, 4 dias movimentando muito”, incluiu o morador.

A crítica ao instituto estadual também foi feita pela presidente da Comissão Ambiental Sul: “O Inea é bem complicado mesmo, mas não sei se pela questão de o Rio Paraíba do Sul ser um rio federal, ele seria o mais adequado para fazer a fiscalização. Talvez o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais), mas ele também parece estar inoperante neste momento”, afirmou Adriana, referindo-se ao órgão federal cujo presidente vem sendo acusado de facilitação de contrabando de madeira ilegal, junto com o Ministro do Meio Ambiente.


Crédito de imagem/Arquivo Pessoal Adriana Vasconcelos, presidente da Comissão Ambiental Sul

A maior parte dos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) feitos entre as empresas e o MPF desde a denúncia do jornal O Dia, que resultou em uma ação civil pública, vêm sendo descumpridas. As multas determinadas pela Justiça devido a estes descumprimentos têm sido pagas tanto pela Harsco quanto pela CSN, mas o grande entrave é a redução da montanha de escória. Através de uma nota, o MPF afirmou que está trabalhando junto com o Ministério Público Estadual em busca de soluções, mas que ainda não chegaram a um acordo sobre o depósito:

“As empresas HARSCO e CSN já efetuaram pagamento de multas, seja através de depósito de dinheiro que está em conta judicial, seja mediante garantia de apólice de seguro. Elas sustentam que estão cumprindo a decisão judicial, mas alegam dificuldades na redução das pilhas. Há discussão no processo quanto a esse ponto. Para os próximos passos, aguarda-se a realização de perícia judicial, que verificará todas as questões socioambientais que envolvem a operação da atividade no pátio. Não obstante, os Ministérios Públicos Federal e Estadual têm mantido uma série de reuniões com as empresas objetivando um acordo sobre o litígio”.

Parece que as plantas e o sistema respiratório dos moradores de Volta Redonda ainda têm muito o que esperar para ter uma vida melhor. Ainda não foi desta vez que o Meio Ambiente venceu. Mas o Pavio vai seguir de olho nesta história.


Indígenas e meio ambiente: “A gente defende a terra e a terra nos protege”

 

Crédito imagens/arquivo pessoal João Vítor Gomes de Oliveira

Por Gabrielle Granadeiro


    “O meio ambiente nos protege e a gente deve proteger o meio ambiente para que ele continue resguardado, protegido. Essa defesa não é só para nós, Pankararus ou indígenas, mas para toda a população. Tem a ver com a qualidade do ar, da água, com o aumento do fluxo de chuvas, as condições geográficas e biológicas que precisam estar sempre sendo reforçadas. Não é apenas uma defesa egoísta.”

    É desta maneira que o ativista ambiental João Vítor Gomes de Oliveira, da etnia indígena Pankararu, resume a importância de defender o meio ambiente. De forma geral, os povos indígenas têm uma ligação mais direta com a natureza, retirando dela os meios para sua sobrevivência. Em muitas nações, eles se consideram parte dela, como mostram estudos antropológicos – como o do brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, relacionando a própria origem à da terra. É o caso dos Pankararu, que usam o meio ambiente para se orientar:

    “Os antigos contam que vivíamos na Cachoeira de Itaparica e um grupo de indígenas resolveu pular nela para se encantar. Esses encantados são seres espirituais que orientam para o bem viver: orientações de saúde, uso de ervas. A gente observa as estrelas, as nuvens, os animais para se orientar. São os sinais que vemos serem transmitidos pela natureza. Se não tem a natureza na íntegra, a gente não vê isso”, explica João Vítor, que também integra a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e atua como articulador da Comissão de Juventude Indígena de Pernambuco (Cojipe).

Além do caráter mais religioso de orientação, essa etnia, que se vive no sertão de Pernambuco, próximo ao rio São Francisco, usa a força dos quatro elementos – fogo, terra, água e ar – em seus rituais e na alimentação. Retira da terra a argila branca para se pintar e se proteger nos rituais; extrai o barro para preparar os utensílios nos quais serão feitas as comidas, além de plantar e colher grande parte da alimentação, apesar de ter tido problemas com a área plantável nos últimos anos.

    “Aqui na aldeia existe soberania alimentar e nutricional. Sempre nos alimentamos do que tinha na terra, como pornunça – um tipo de mandioca – umbu, murici, palma, caça com peixe, feijão, batata. Nos últimos anos começamos a ter acesso aos alimentos industrializados e mudou o perfil de alimentação. Além disso, sofremos com posseiros que passaram a morar e plantar em nossas terras, nos deixando nas regiões mais montanhosas, onde o plantio é mais difícil”, relata o ativista.

    Ele explica que as invasões de posseiros começaram ainda na década de 1940 e que, à medida que foram aumentando, impediram o acesso do povo Pankararu às terras mais planas. Em 1987, a área foi demarcada como pertencente aos indígenas, mas somente em 2018 os posseiros passaram a deixar a região, o que eles chamam de “desintrusão”. Ainda assim, o plantio não pôde ser retomado imediatamente, devido à exploração intensiva da terra, que foi erodida e desmatada pelos posseiros.

Crédito imagens/arquivo pessoal João Vítor Gomes de Oliveira


    “Demos um tempo para a terra descansar e só depois voltamos a plantar. Hoje conseguimos ter feijão, milho, de forma sustentável e familiar, sem agrotóxicos, para nosso autossustento. A gente até comercializa, mas é entre si: um planta uma coisa e vende para o outro que planta outra. Sobre a terra, quando a retomamos, havia sinais de erosão, porque eles [os posseiros] tiravam a terra para vender, desmatavam. Em áreas que considerávamos sagradas, eles queimaram árvores para aumentar o pasto”, lamenta o ativista, acrescentando que a “desintrusão”, embora tenha acontecido há alguns anos, não fez com que os Pankararu vivessem completamente em paz:

    “Os posseiros que viviam aqui são camponeses, agricultores que acreditam que perderam suas terras e querem se vingar. Até hoje recebemos ameaças, placas com ameaças e nomes de pessoas. Eles cortam arame das cercas para que seus animais venham pastar aqui, continuam nos intimidando. O Ministério Público e a Funai sabem, temos lideranças no programa de proteção e não sabemos o que eles podem fazer conosco para se vingar”.

    Confirmando as informações passadas por João Vítor, a página do Ministério Público Federal na internet informou, em agosto de 2020, que notificara o Ibama, a Funai e a Polícia Federal sobre as invasões dos posseiros e ameaças às lideranças indígenas, e que um inquérito administrativo tramitava em caráter prioritário.

    Outro ponto considerado importante para manter a boa relação com o meio ambiente, na opinião do ativista, é a valorização dos saberes tradicionais baseados em chás, banhos e sementes curativos. Para ajudar neste trabalho, João cursa a faculdade de Farmácia na Universidade Federal de Sergipe, pois acredita que assim pode ajudar sua comunidade integrando a medicina tradicional indígena com o que ele chama de uso racional da medicina.

    “Tem médico que descredibiliza os saberes tradicionais para fazer uso de medicamentos, cápsulas e xaropes dentro da comunidade desde a época da Funasa [Fundação Nacional de Saúde], para fazer essa ‘empurroterapia’ de remédios. As pessoas precisam confiar nos saberes tradicionais, porque parte da cura vem da fé. Mas não é por isso que só vai usar chá em todos os casos. Por isso defendo esse uso racional dos medicamentos. A medicina tradicional é uma ciência também, uma ciência divina, mas a medicina ocidental também tem seu valor”, explica o universitário.

    No dia 5 de junho celebra-se o Dia Mundial do Meio Ambiente. A data foi instituída pela ONU em 1972, como forma de ressaltar a necessidade de medidas de preservação ambiental e estimular o combate à poluição. Esse trabalho, contudo, é feito cotidianamente por ativistas ambientais e indígenas como João Vítor, que reforçam que esta sensibilização é uma questão de sobrevivência.

    “Resguardar o meio ambiente está na essência de ser Pankararu. Sem acesso à natureza, a gente perde a ligação. Vamos ser qualquer grupo, menos um grupo indígena. Defender a natureza é, sobretudo, defender a vida das pessoas, das plantas, dos animais em nível mundial. Garantir a nossa existência e as que virão depois, também. Não acho que é uma questão de conscientização, porque consciência sobre o problema as pessoas têm, mas de sensibilização sobre o valor destas pautas. Que legados vamos deixar para os que virão? Uma terra degradada, violada ou uma da qual possamos nos orgulhar?”, conclui. 

Fontes: 

Dia Mundial do Meio Ambiente, Wikipédia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Dia_Mundial_do_Ambiente

Eduardo Viveiros de Castro, Wikipédia (https://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Viveiros_de_Castro)

Pankararu, In Povos indígenas no Brasil (https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Pankararu)

" NÃO SOMOS DONOS, SOMOS GUARDIÕES"

Crédito da imagem/acervo pessoal aldeia“Iriri Kãnã Pataxi Üi Tanara”


Texto Mani Ceiba

    Açucena é nome de flor. É uma flor que simboliza a nobreza, a altivez, a elegância. Lendas em várias culturas e até me lembrei de uma música do Ivan Lins que diz: “Minha Açucena, te vejo, A índia vinda das lendas, Iara saída dos rios...”

    Essa Açucena não é lenda. É indígena, guerreira e muito gentil.

    

    Conheci Açucena no meio de uma correria dessas que quem trabalha com questões sociais e diversidade de classe conhece bem. Ela precisava enviar 25 cestas básicas de Cascadura, bairro da zona norte do Rio, para a Bahia, a partir da rodoviária Novo Rio. Sem conhecer o Rio, app de transporte cobrando um valor muito acima do que se imaginava, tentando uma vaquinha, hospedada na casa de amigos... Não, não é um momento isolado na vida de Açucena.  Povos indígenas têm que ir atrás de suas necessidades e buscar resolvê-las como podem e conseguem. Diante do nosso momento político e das questões da pandemia isso ganha um caráter ainda mais trabalhoso.

    Açucena tem 26 anos, um filho de 6 anos e mora na aldeia Pataxó em Paraty, no estado do Rio de Janeiro. Ela veio do extremo sul da Bahia, onde fica a sua aldeia mãe Catarina Paraguaçu. Açucena Pataxó é conselheira do estado e conselheira de saúde da aldeia. 

    Algumas trocas de conversa e fica muito claro que ela sabe do que está falando, e com muita honestidade e clareza da realidade vai me contando que a aldeia Pataxó em Paraty ocupou uma localidade onde seria construído um resort que destruiria toda a mata da região. A aldeia está localizada na rodovia Rio-Santos, km 548. O antigo proprietário que abriu mão dessas terras em troca de outra bem maior, é sempre um fantasma que volta com olho grande. “Medo a gente sempre tem”, diz Açucena. Isso se deve ao que essa aldeia fez com o lugar, despertando o interesse financeiro individual e capitalista em querer tirar algum proveito. 

Crédito da imagem/Arquivo pessoal Açucena

    - O meu povo tem a melhor e mais linda relação com a Mãe Terra. Fizemos a ocupação com o intuito de cuidarmos pra evitar poluição e desmatamento. Guiamos os turistas e frequentadores. Estamos pra cuidar e não somos donos e sim guardiões! – esclarece Açucena Pataxó. 

    A Aldeia “Iriri Kãnã Pataxi Üi Tanara”, que significa “Minha aldeia é a natureza”, conseguiu transformar essa localidade em um espaço que respeita a natureza, mantém equilíbrio com o modo de vida e ainda é aberto a turistas. Antes da pandemia, eles podiam ter contato com o estilo de vida e costumes e ainda contribuir com a aldeia, comprando artesanato indígena, pagando por um lugar para deixar o carro e dormindo dentro da reserva, por exemplo. Duas fotos que Açucena me envia e já sinto o quanto o lugar é especial. Não é à toa que se alguém jogar na barra de pesquisa, paraíso é a palavra mais usada por quem já esteve lá.

    A aldeia enfrenta desafios permanentes por conta dessa demarcação do território e a ameaça constante onde os “não donos de terra se dizem donos de terra indígena” e a luta pra manter os costumes e cultura.

    E o desafio de hoje é manter a aldeia em isolamento e com sustentabilidade. Ele é ainda maior já que a aldeia dependia das vendas de artesanatos e visitas turísticas. Com os cuidados com a prevenção a Covid, ficou desestabilizada com a falta de apoio. 

    A aldeia tem uma página oficial no facebook para divulgar seus trabalhos. https://www.facebook.com/iririkanapataxiuitanara/ 

    E assim que a pandemia passar, a possibilidade de nos vermos por lá é bem grande!

Crédito da imagem/ arquivo pessoal Açucena