quarta-feira, 6 de outubro de 2021

“Quem tem fome, tem pressa!”

Na ausência de políticas públicas, Brasil volta ao mapa da fome e sociedade civil se mobiliza 


Por Alvaro Britto


    Infelizmente, no Brasil pós golpe de 2016, a famosa frase de Herbert de Souza, o Betinho, “Quem tem fome, tem pressa!”, dita décadas atrás, nunca foi tão atual. Há poucas semanas, o país mais uma vez ficou chocado com a morte bárbara de uma mãe de 32 anos, que teve 90% do corpo queimado porque, sem dinheiro para comprar gás, usou álcool para cozinhar. Moradora de Osasco (SP), ela deixou órfão um bebê de 8 meses.

    Pouco depois, foi a foto da primeira página do jornal Extra, que revelou famílias procurando em um caminhão restos de carne em pedaços de ossos e pelanca bovinos descartados por supermercados da zona Sul do Rio que seriam levados para fábricas de ração e sabão. 



19 milhões passando fome

    Através de emenda incluída pelo Congresso Nacional em 2010, Constituição estabelece que alimentação é um direito social do povo brasileiro. De lá para cá, entretanto, ao mesmo tempo em que exportações do agronegócio ganharam força, o direito à alimentação tem sido realidade para menos brasileiros.

    A partir de 2020, o aumento da fome no Brasil foi impactado pela pandemia, como em outros países. Mas não é só o efeito da Covid que explica o agravamento do nível de segurança alimentar dos brasileiros, que já vinha piorando antes do coronavírus.

    O alastramento da fome no Brasil é reflexo também do fim ou esvaziamento de programas voltados para estimular a agricultura familiar e combater a fome, além de defasagem na cobertura e nos valores do Bolsa Família.

    São 19 milhões de brasileiros em situação de fome no Brasil, segundo dados de 2020 da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). A comparação com 2018 (10,3 milhões) revela uma diferença de mais 9 milhões de pessoas. 

    Segundo dados anteriores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é possível ver que em 2013 o Brasil teve o melhor nível de segurança alimentar da série histórica (Pnad), com mais de 77% dos domicílios nessa condição. Em 2014, o Brasil inclusive deixou o chamado Mapa da Fome da ONU.

    Cerca de quatro anos depois, no entanto, a Pesquisa de Orçamento Familiar (2017/2018) do IBGE mostrou que a situação de segurança alimentar era vivenciada por apenas 63,3% dos domicílios pesquisados. Assim, este ano, o Brasil voltou ao Mapa da Fome com o mesmo patamar de insegurança alimentar do início dos anos 2000: quase 10% dos brasileiros não têm o que comer. 


Ação da Cidadania cobra governo no STF

    Fundada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, a Ação da Cidadania nasceu em 1993, formando uma imensa rede de mobilização de alcance nacional para ajudar 32 milhões de brasileiros que, segundo dados do Ipea, estavam abaixo da linha da pobreza. Seu principal eixo de atuação é uma extensa rede de mobilização formada por comitês locais da sociedade civil organizada, em sua maioria compostos por lideranças comunitárias, mas com participação de todos os setores sociais.

    Depois de dez anos sem distribuir cestas básicas, a ONG identificou a necessidade de retomar essa distribuição em 2017. Neste ano, arrecadou mais de R$ 146 milhões e distribuiu alimentos em todos os estados e no DF.  

    E, no final de setembro, resolveu promover também uma iniciativa mais contundente buscando atacar a raiz do problema. Através da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação para obrigar o governo Bolsonaro a implementar políticas públicas de combate à fome, em aliança com estados e municípios.

    O peça jurídica é uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental com Pedido de Medida Cautelar (ADPF), justificada pelas “ações e omissões levadas a cabo pelo Poder Público Federal na gestão da fome no Brasil, por violação a preceitos fundamentais da Constituição da República”, diz o texto encaminhado ao STF. 

Saiba quais são as medidas ajuizadas

    a) revogar a medida provisória que acabou com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão responsável por políticas públicas centradas no combate à fome;

    b) em relação ao Bolsa Família: incluir automaticamente pessoas em situação de pobreza e pobreza extrema a partir da comprovação do critério de renda; e reajustar o valor da renda per capita que define quem pode acessar o programa, assim como os valores dos benefícios transferidos às famílias;

    c) quanto ao Programa Nacional de Alimentação Escolar: que o governo repasse recursos suplementares para a compra de alimentos aos estados, municípios e Distrito Federal; e promovam, junto aos governos locais, ações que garantam, mesmo durante a suspensão das aulas presenciais em decorrência da pandemia, que os estudantes da rede pública de ensino tenham acesso a uma alimentação adequada até o retorno às aulas presenciais nas escolas;

    d) investimento imediato de R$ 1 bilhão no Programa de Aquisição de Alimentos, e que esse recurso seja reajustado anualmente pelo IPCA;

    e) retomada e ampliação do Auxílio Emergencial no valor de R$600;

    f) revogação da aplicação do teto dos gastos e recomposição do orçamento para as políticas públicas de segurança alimentar e nutricional: Programa de Aquisição de Alimentos, de construção de cisternas, assistência técnica rural, distribuição de alimentos, Bolsa Verde, organização econômica de mulheres rurais, e desenvolvimento sustentável de comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais;

    g) recomposição dos estoques públicos de alimentos da Conab com ações de controle de preços para evitar falta de alimentos e inflação descompensada;

    h) garantia de acesso da população ao gás de cozinha por meio de uma adequada política de preços;

    i) abertura de crédito adicional no orçamento de 2021 para a realização do Censo e garantia de publicidade dos dados e resultados da pesquisa;

    j) fortalecimento das linhas de créditos para micro e pequenas empresas.


'Solução para fome não é distribuir cesta básica'

    Em entrevista à BBC News Brasil, Rodrigo “Kiko” Afonso, coordenador da Ação da Cidadania, afirmou que é preciso combater a ideia de que a solução para a fome está na distribuição de cestas básicas, que é uma ação emergencial.

    "A gente não pode achar que a solução da fome é distribuir cesta básica, que a solução é pegar alimentos vencidos ou pegar sobras de restaurantes ou de comidas de pessoas da classe média e distribuir para as pessoas", disse.

    Kiko se referiu à declaração do ministro da Economia, Paulo Guedes, que em junho comparou o prato dos europeus ("pratos relativamente pequenos") e dos brasileiros e falou em direcionar alimentos desperdiçados a programas sociais.

    Segundo Kiko, distribuir cestas básicas é uma atuação de emergência. “O governo, ao longo dos últimos anos, criou parte desse problema que a gente está hoje. Não queremos fazer isso, a gente quer que o governo assuma o sua responsabilidade e que a política pública volte a assumir o seu papel". 


“Miséria é imoral. Pobreza é imoral. Talvez seja o maior crime moral que uma sociedade possa cometer”. - Betinho

Fontes: Ação da Cidadania; BBC News Brasil; Observatório do Terceiro Setor; G1


1 comentário:

  1. Álvaro sempre trazendo a essência do capitalismo dependente ao centro do debate! Parabéns companheiro, já usando seu texto no grupo de estudos com as devidas honras...

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