terça-feira, 9 de novembro de 2021

CONSCIÊNCIA NEGRA: a fala dos quilombolas

  

Por Alvaro Britto

Em mais uma reportagem celebrando o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, o Pavio Curto entrevistou duas lideranças quilombolas: Bia Nunes, presidente da Associação Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ) e Toninho Canecão, presidente da Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo São José da Serra, localizado em Valença, na região Sul Fluminense.

Conversamos sobre temas como a importância do resgate da memória de Zumbi e Dandara, as principais demandas e bandeiras de luta das comunidades quilombolas, o papel das redes sociais na denúncia dos casos de racismo, o espaço aberto para os negros na chamada grande mídia, o triste momento que atravessa a Fundação Palmares e a participação do movimento quilombola nas eleições de 2022, entre outras questões.

Mas...o que é quilombo?

‘Aos remanescentes das Comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos’
Art. 68/ADCT/CF-1988



A palavra quilombo é originária do idioma africano quimbunco, que significa: sociedade formada por jovens guerreiros que pertenciam a grupo étnicos desenraizados de suas comunidades.

A noção de identidade quilombola está estreitamente ligada à ideia de pertença. Essa perspectiva de pertencimento, que baliza os laços identitários nas comunidades e entre elas, parte de princípios que transcendem a consanguinidade e o parentesco, e vinculam-se a ideias tecidas sobre valores, costumes e lutas comuns, além da identidade fundada nas experiências compartilhadas de discriminação.

 O Território Remanescente de Comunidade Quilombola é fruto das várias e heroicas resistências ao modelo escravagista e opressor instaurado no Brasil colônia e do reconhecimento dessa injustiça histórica. Embora continue presente perpassando as relações socioculturais da sociedade brasileira, o escravagismo vigorou institucionalmente até 1888.

 A caracterização dos remanescentes de quilombo deve ser dada segundo critérios de auto atribuição atestados pelas próprias comunidades, como também previsto pela Convenção da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais.

Essa garantia, entretanto, só foi regulamentada em 2003, através do Decreto Federal Nº 4.8878, assinado pelo então presidente Lula, que definiu o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo o INCRA o órgão competente na esfera federal, havendo competência comum aos respectivos órgãos de terras estaduais e municipais.

E como se organizam os quilombolas?

1995 foi um marco para o movimento negro brasileiro pela passagem dos 300 anos da morte de Zumbi. Na ocasião, foi titulado o primeiro quilombo no Brasil, o Quilombo Boa Vista, em Oriximiná, no Pará, aconteceu a histórica marcha 300 anos Zumbi e também quando o dia 20 de novembro foi considerado o Dia Nacional da Consciência Negra.

Ainda em 1995 foi realizado, por um conjunto de organizações negras com a participação de lideranças quilombolas, o I Encontro Nacional de Comunidades Quilombolas. Uma das suas principais deliberações foi a criação de uma entidade política de representação das comunidades quilombolas, que consolidou-se em 12 de maio de 1996 em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, com a criação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).

A CONAQ é uma organização nacional sem fins lucrativos que representa os quilombolas do Brasil. Seus objetivos são lutar pela garantia de uso coletivo do território; implantação de projetos de desenvolvimento sustentável e de políticas públicas respeitando a organização das comunidades; educação de qualidade e coerente com o modo de viver nos quilombos; protagonismo e autonomia das mulheres quilombolas; permanência do jovem no quilombo e acima de tudo pelo uso comum do território, dos recursos naturais e em harmonia com o meio ambiente.

A constituição da Conaq lança o movimento quilombola no cenário nacional, que passa a ser reconhecido como um dos mais ativos agentes do movimento negro no Brasil contemporâneo e introduz um debate que busca fortalecer a perspectiva de que o país tem em suas estruturas mais profundas uma grande pluralidade étnica. A CONAQ integra a secretaria operativa ada Coalizão Negra por Direitos, articulação nacional do movimento negro.

E no Rio de Janeiro?

As organizações quilombolas, nos estados, são constituídas de diferentes formas. Algumas estão organizadas enquanto Associação ou Federação, tal como o Rio de Janeiro, onde a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ) foi fundada em 3 de outubro de 2003. Ela é formada por um grupo de diretores com representantes das regiões em colegiado com todas as comunidades quilombolas do estado.


Na comemoração dos seus 18 anos de lutas e conquistas, em outubro deste ano, a ACQUILERJ homenageou quilombolas vítimas da Covid 19, como a Tia Uia (Carivaldina Oliveira da Costa), do quilombo da Rasa, em Búzios. “Quando falamos dela, nós falamos da nossa força, da nossa identidade, da nossa resistência”, afirmou a presidente da Associação, Bia Nunes, reforçando a importância da Tia Uia para a história da luta quilombola no Rio e Janeiro.

No evento, realizado na Assembleia Legislativa, foi também lançado o livro “Relatório: Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro”, produzido por Pedro Rebelo, colaborador da ong Koinonia, em parceria com a ACQUILERJ. A pesquisa mapeia a situação de 32 das 52 comunidades quilombolas do estado no contexto da pandemia de Covid-19. Houve ainda apresentações culturais de jongo.

 

Bia Nunes: “As bandeiras de luta do nosso povo são diversas, porém todas passam pela resistência e permanência em seus territórios”

Ana Beatriz Bernardes Nunes, conhecida como Bia Nunes, tem 54 anos e nasceu na comunidade remanescente de quilombo de Maria Conga, em Magé, na Baixada Fluminense. Bia mora em Santo Aleixo, 2º distrito de Magé, é professora de alfabetização e ex- conselheira tutelar por dois mandatos. Ela está como presidente do Conselho Municipal de Direito da Criança e do Adolescente de Magé e vice-presidente do Conselho Estadual da Promoção da Igualdade Racial (CEDINE-RJ).

Bia foi eleita presidente da ACQUILERJ, sucedendo Ivone Bernardo, no VI Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro, realizado em agosto deste ano no Quilombo Baía Formosa, em Armação dos Búzios. O mandato da diretoria vai até 2024.  

Ela explicou que o nome da comunidade quilombola onde nasceu homenageia Maria da Conceição, que veio da África.  Maria Conga nasceu na África em 1792. Oito anos depois, chegou ao Brasil junto com a família, num navio negreiro. Separada dos pais, acabou vendida para um senhor de engenho, em Salvador. Lá, recebeu o nome de Maria da Conceição. Até conquistar a liberdade, aos 35 anos, foi vendida outras duas vezes. Quando se tornou livre, fundou o quilombo em Magé para proteger os refugiados.



“Tanto nesse 20 de novembro de 2021 quanto nos demais é necessário falar, verbalizar, ressaltar a importância da memória histórica de toda luta do povo escravizado do nosso Brasil. Zumbi e Dandara se tornaram referência nacional na luta quilombola assim como outros nomes importantes nessa luta de resistência histórica do nosso povo. Pouco se falou da nossa verdadeira história nos livros didáticos, e hoje os escritores que buscaram elucidar o conhecimento de uma forma didática e pedagógica, são injuriados, caluniados e com suas narrativas distorcidas.”

“Entre diversas demandas do povo quilombola que já vivia de uma forma isolada, protegendo e lutando pelos seus territórios, hoje enfrenta diversas outras situações de caos instalado pelo desconhecimento, negacionismo, ignorância, e despreparo da parte de uma grande parte da representação do poder público. Um povo que além de ter que enfrentar a situação da falta de políticas públicas voltadas para saúde, educação, geração de trabalho e renda, entre outras, ainda encontra-se tendo que fazer uma defesa muito mais contundente de seu espaço e território, pois enquanto toda uma sociedade vivia isolada em função da pandemia, a boiada passou e invadiu ainda mais os territórios quilombolas.”

 “As bandeiras de luta do nosso povo são diversas, porém todas passam pela resistência e permanência em seus territórios. O título da terra é o que pode garantir a manutenção histórica do nosso povo, a manutenção histórica do Brasil.”

“Como outros diversos instrumentos, a rede social também tem sido um elemento norteador para garantir algumas denúncias e narrativas explícitas, levando um conhecimento que ainda era desconhecido por boa parte de nossa população. Acredito que muitos ao tomar conhecimento das verdadeiras histórias têm buscado também mudar os seus comportamentos. Nesse sentido a rede social tem sido esse instrumento que tem abalado as estruturas de nossa sociedade, tirando assim alguns da sua chamada zona de conforto.”

“Acredito que o comportamento das grandes mídias abertas, em relação aos espaços para negros e negras em telejornais, novelas e publicidade nada mais é do que uma grande pressão do mercado. Como falei antes, as redes sociais têm provocado no mercado um comportamento de necessidade para que estes saiam de fato de sua zona de conforto. Ainda faltam muitas ações eficazes para que de fato a grande mídia desenvolva espaços para o nosso povo. A mudança ocorre ainda em passos lentos e já deveríamos ter avançado muito mais, porém o racismo estrutural ainda é em uma proporção muito grande.”

“Falar de 2022 é falar dos últimos anos de retrocesso vivido pela nossa população. É fundamental identificar quem são os capitães do mato, pois as marcas das chibatas estão explícitas em nosso corpo, assim como em nossa memória. Sabemos que a mudança precisa acontecer internamente para que ela possa se materializar externamente, e o nosso papel é extirpar o tumor antes que este se enraíze por todo o corpo. O nosso posicionamento é desenvolver toda articulação para lançamento de candidaturas quilombolas e apoio aos parceiros que representam nossas causas.”

Toninho Canecão: “Zumbi sempre será lembrado, a lembrança dele é tão forte que nem aparecem essas pessoas do contra”


Antônio do Nascimento Fernandes, o Toninho Canecão, é presidente da Associação da Comunidade Negra Remanescente do Quilombo São José da Serra, localizado no distrito de Santa Isabel do Rio Preto, município de Valença, na região Sul Fluminense. Desde a chegada dos negros escravizados na fazenda em 1850, a comunidade do Quilombo São José da Serra tem sua história perpassada pelo combate ao preconceito racial e a intolerância religiosa e, após a Abolição, somaram-se a resistência e luta constante pelo direito à terra.

O processo de regularização teve início em outubro de 2005, quando a Associação a requereu junto ao Incra-RJ.  Incra/RJ. Depois de vários procedimento técnicos e administrativos, em dezembro de 2007 foi emitida Certidão de Autorreconhecimento pela Fundação Palmares, certificando que a Comunidade de São José da Serra é remanescente de quilombos. No dia 20 de novembro de 2009, os moradores do quilombo conquistaram o título das terras da fazenda, porém a lentidão do Estado na garantia deste e de outros direitos constitucionais só possibilitou a posse efetiva das terras em abril de 2015. O território possui 31 famílias descendentes de escravos, distribuídas em 476 hectares.

O jongo de São José da Serra tem sido uma importante ferramenta na difusão e na afirmação da sua identidade afro-brasileira. A partir dela os moradores têm feito palestras em escolas e recebido visitas no quilombo como forma de reforçar a luta da comunidade negra pelos seus direitos. Ao reforçarem sua identidade como originários de famílias de escravos Bantu, vasto grupo linguístico e cultural da África Central, compartilham uma série de valores que englobam a interação constante entre dois mundos: de um lado, o dos vivos, e de outro, e o das entidades, guias ou espíritos, que influenciam os destinos dos vivos.

Este sentimento de interação entre os mundos é expresso de forma intensa por meio da prática do Jongo - ritmo que, desde a chegada de escravizados africanos em terras fluminenses, demarca o patrimônio cultural e religioso de seus descendentes. Segundo estudos, a comunidade de São José da Serra é um dos seus berços no Brasil. Jongo (o canto), aliado ao caxambu (a dança), representa o ápice das festas do “13 de Maio”, dos dias dos santos católicos de devoção da comunidade, das festas juninas, dos eventos familiares especiais e das apresentações públicas, como é o Encontro de Jongueiros, realizado anualmente.  


“A força do quilombo mesmo é o negro, a união e o jongo. E o jongo é o início, o meio e a permanência. Eu não vou dizer fim não, é a permanência, porque tudo que gira em torno do quilombo gira em torno do jongo”, afirmou Toninho Canecão. “Hoje no quilombo, antes de ser batizada na igreja, a criança é batizada na roda de jongo. Então, a gente tem muito respeito com o jongo”, completou.”

“Zumbi sempre será lembrado, a lembrança dele é tão forte que nem aparecem essas pessoas do contra.”

“As nossas maiores demandas são os títulos dos territórios de quilombos e o reconhecimento de outras terras maiores.”

“A bandeira de luta dos quilombos é garantir a chegada de recursos nas comunidades.”

 “A publicação na rede social sempre mostra o lado da moeda que fica para baixo e atualmente a internet está ao alcance de todos. Hoje (a consciência sobre o racismo) tá melhor que ontem, um dia a gente chega lá. “

“Sérgio Camargo é um inútil. Ele conseguiu se isolar dentro de uma grande casa que é a Fundação Palmares.”

“Espero que alguém comprometido com a nossa luta se lance a candidata ou candidato. A gente não perde a esperança. A nossa hora vai chegar.”

 

 

Fotos: divulgação ACQUILERJ

Fontes: coalizaonegrapordireitos.org.br; fase.org.br; oxfam.org.b; ceert.org.br; cpisp.org.br; kn.org.br

Sem comentários:

Enviar um comentário