Por Alvaro Britto
Em mais uma reportagem celebrando o Dia Nacional de Zumbi e da
Consciência Negra, o Pavio Curto entrevistou duas
lideranças quilombolas: Bia Nunes, presidente da Associação Estadual das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de
Janeiro (ACQUILERJ) e Toninho Canecão, presidente da Associação da Comunidade
Remanescente do Quilombo São José da Serra, localizado em Valença, na região
Sul Fluminense.
Conversamos sobre temas como a importância
do resgate da memória de Zumbi e Dandara, as principais demandas e bandeiras de
luta das comunidades quilombolas, o papel das redes sociais na denúncia dos
casos de racismo, o espaço aberto para os negros na chamada grande mídia, o
triste momento que atravessa a Fundação Palmares e a participação do movimento quilombola
nas eleições de 2022, entre outras questões.
Mas...o que é quilombo?
‘Aos
remanescentes das Comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras, é
reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos
respectivos’
Art. 68/ADCT/CF-1988
A palavra quilombo é originária do
idioma africano quimbunco, que significa: sociedade formada por jovens
guerreiros que pertenciam a grupo étnicos desenraizados de suas comunidades.
A noção de identidade quilombola está
estreitamente ligada à ideia de pertença. Essa perspectiva de pertencimento,
que baliza os laços identitários nas comunidades e entre elas, parte de
princípios que transcendem a consanguinidade e o parentesco, e vinculam-se a ideias
tecidas sobre valores, costumes e lutas comuns, além da identidade fundada nas
experiências compartilhadas de discriminação.
O
Território Remanescente de Comunidade Quilombola é fruto das várias e heroicas
resistências ao modelo escravagista e opressor instaurado no Brasil colônia e
do reconhecimento dessa injustiça histórica. Embora continue presente
perpassando as relações socioculturais da sociedade brasileira, o escravagismo
vigorou institucionalmente até 1888.
A
caracterização dos remanescentes de quilombo deve ser dada segundo critérios de
auto atribuição atestados pelas próprias comunidades, como também previsto pela
Convenção da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais.
Essa garantia, entretanto, só foi
regulamentada em 2003, através do Decreto Federal Nº 4.8878, assinado pelo
então presidente Lula, que definiu o procedimento para identificação,
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo o INCRA o órgão competente
na esfera federal, havendo competência comum aos respectivos órgãos de terras
estaduais e municipais.
E como se organizam os
quilombolas?
1995 foi um marco para o movimento negro brasileiro pela passagem
dos 300 anos da morte de Zumbi. Na ocasião, foi titulado o primeiro quilombo no
Brasil, o Quilombo Boa Vista, em Oriximiná, no Pará, aconteceu a histórica
marcha 300 anos Zumbi e também quando o dia 20 de novembro foi considerado o
Dia Nacional da Consciência Negra.
Ainda em 1995 foi realizado, por um conjunto de organizações
negras com a participação de lideranças quilombolas, o I Encontro Nacional de
Comunidades Quilombolas. Uma das suas principais deliberações foi a criação de
uma entidade política de representação das comunidades quilombolas, que
consolidou-se em 12 de maio de 1996 em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, com a
criação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas (CONAQ).
A CONAQ é uma organização nacional sem fins lucrativos que
representa os quilombolas do Brasil. Seus objetivos são lutar pela garantia de
uso coletivo do território; implantação de projetos de desenvolvimento
sustentável e de políticas públicas respeitando a organização das comunidades; educação
de qualidade e coerente com o modo de viver nos quilombos; protagonismo e
autonomia das mulheres quilombolas; permanência do jovem no quilombo e acima de
tudo pelo uso comum do território, dos recursos naturais e em harmonia com o
meio ambiente.
A constituição da Conaq lança o movimento quilombola no
cenário nacional, que passa a ser reconhecido como um dos mais ativos agentes
do movimento negro no Brasil contemporâneo e introduz um debate que busca
fortalecer a perspectiva de que o país tem em suas estruturas mais profundas
uma grande pluralidade étnica. A CONAQ integra a secretaria operativa ada
Coalizão Negra por Direitos, articulação nacional do movimento negro.
E no Rio de Janeiro?
As organizações quilombolas,
nos estados, são constituídas de diferentes formas. Algumas estão organizadas
enquanto Associação ou Federação, tal como o Rio de Janeiro, onde a Associação
das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ)
foi fundada em 3 de outubro de 2003. Ela é formada por um grupo de diretores
com representantes das regiões em colegiado com todas as comunidades quilombolas
do estado.
Na comemoração dos seus 18 anos de lutas e conquistas, em outubro deste
ano, a ACQUILERJ homenageou quilombolas vítimas da Covid 19, como a Tia Uia
(Carivaldina Oliveira da Costa), do quilombo da Rasa, em Búzios. “Quando
falamos dela, nós falamos da nossa força, da nossa identidade, da nossa
resistência”, afirmou a presidente da Associação, Bia Nunes, reforçando a
importância da Tia Uia para a história da luta quilombola no Rio e Janeiro.
No evento, realizado na
Assembleia Legislativa, foi também lançado o livro “Relatório: Comunidades
Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro”, produzido por Pedro Rebelo,
colaborador da ong Koinonia, em parceria com a ACQUILERJ. A pesquisa mapeia a
situação de 32 das 52 comunidades quilombolas do estado no contexto da pandemia
de Covid-19. Houve ainda apresentações culturais de jongo.
Bia Nunes: “As bandeiras de luta do nosso povo são
diversas, porém todas passam pela resistência e permanência em seus territórios”
Ana Beatriz Bernardes Nunes, conhecida
como Bia Nunes, tem 54 anos e nasceu na comunidade remanescente de quilombo de
Maria Conga, em Magé, na Baixada Fluminense. Bia mora em Santo Aleixo, 2º distrito
de Magé, é professora de alfabetização e ex- conselheira tutelar por dois
mandatos. Ela está como presidente do Conselho Municipal de Direito da Criança
e do Adolescente de Magé e vice-presidente do Conselho Estadual da Promoção da
Igualdade Racial (CEDINE-RJ).
Bia foi eleita presidente da ACQUILERJ,
sucedendo Ivone Bernardo, no VI Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas
do Estado do Rio de Janeiro, realizado em agosto deste ano no Quilombo Baía
Formosa, em Armação dos Búzios. O mandato da diretoria vai até 2024.
Ela explicou que o nome da comunidade quilombola onde nasceu homenageia Maria da Conceição, que veio da África. Maria Conga nasceu na África em 1792. Oito anos depois, chegou ao Brasil junto com a família, num navio negreiro. Separada dos pais, acabou vendida para um senhor de engenho, em Salvador. Lá, recebeu o nome de Maria da Conceição. Até conquistar a liberdade, aos 35 anos, foi vendida outras duas vezes. Quando se tornou livre, fundou o quilombo em Magé para proteger os refugiados.
“Tanto nesse 20 de
novembro de 2021 quanto nos demais é necessário falar, verbalizar, ressaltar a
importância da memória histórica de toda luta do povo escravizado do nosso
Brasil. Zumbi e Dandara se tornaram referência nacional na luta quilombola assim
como outros nomes importantes nessa luta de resistência histórica do nosso
povo. Pouco se falou da nossa verdadeira história nos livros didáticos, e hoje
os escritores que buscaram elucidar o conhecimento de uma forma didática e
pedagógica, são injuriados, caluniados e com suas narrativas distorcidas.”
“Entre diversas
demandas do povo quilombola que já vivia de uma forma isolada, protegendo e
lutando pelos seus territórios, hoje enfrenta diversas outras situações de caos
instalado pelo desconhecimento, negacionismo, ignorância, e despreparo da parte
de uma grande parte da representação do poder público. Um povo que além de ter
que enfrentar a situação da falta de políticas públicas voltadas para saúde,
educação, geração de trabalho e renda, entre outras, ainda encontra-se tendo
que fazer uma defesa muito mais contundente de seu espaço e território, pois
enquanto toda uma sociedade vivia isolada em função da pandemia, a boiada
passou e invadiu ainda mais os territórios quilombolas.”
“As bandeiras de luta do nosso povo são
diversas, porém todas passam pela resistência e permanência em seus
territórios. O título da terra é o que pode garantir a manutenção histórica do
nosso povo, a manutenção histórica do Brasil.”
“Como outros diversos
instrumentos, a rede social também tem sido um elemento norteador para garantir
algumas denúncias e narrativas explícitas, levando um conhecimento que ainda
era desconhecido por boa parte de nossa população. Acredito que muitos ao tomar
conhecimento das verdadeiras histórias têm buscado também mudar os seus
comportamentos. Nesse sentido a rede social tem sido esse instrumento que tem
abalado as estruturas de nossa sociedade, tirando assim alguns da sua chamada
zona de conforto.”
“Acredito que o
comportamento das grandes mídias abertas, em relação aos espaços para negros e
negras em telejornais, novelas e publicidade nada mais é do que uma grande
pressão do mercado. Como falei antes, as redes sociais têm provocado no mercado
um comportamento de necessidade para que estes saiam de fato de sua zona de
conforto. Ainda faltam muitas ações eficazes para que de fato a grande mídia
desenvolva espaços para o nosso povo. A mudança ocorre ainda em passos lentos e
já deveríamos ter avançado muito mais, porém o racismo estrutural ainda é em
uma proporção muito grande.”
“Falar de 2022 é falar
dos últimos anos de retrocesso vivido pela nossa população. É fundamental
identificar quem são os capitães do mato, pois as marcas das chibatas estão
explícitas em nosso corpo, assim como em nossa memória. Sabemos que a mudança
precisa acontecer internamente para que ela possa se materializar externamente,
e o nosso papel é extirpar o tumor antes que este se enraíze por todo o corpo. O
nosso posicionamento é desenvolver toda articulação para lançamento de
candidaturas quilombolas e apoio aos parceiros que representam nossas causas.”
Toninho
Canecão: “Zumbi sempre será lembrado, a lembrança dele é tão forte que nem
aparecem essas pessoas do contra”
Antônio do Nascimento Fernandes, o Toninho Canecão, é presidente da Associação da Comunidade Negra Remanescente do Quilombo São José da Serra, localizado no distrito de Santa Isabel do Rio Preto, município de Valença, na região Sul Fluminense. Desde a chegada dos negros escravizados na fazenda em 1850, a comunidade do Quilombo São José da Serra tem sua história perpassada pelo combate ao preconceito racial e a intolerância religiosa e, após a Abolição, somaram-se a resistência e luta constante pelo direito à terra.
O processo de
regularização teve início em outubro de 2005, quando a Associação a requereu junto
ao Incra-RJ. Incra/RJ. Depois de vários
procedimento técnicos e administrativos, em dezembro de 2007 foi emitida
Certidão de Autorreconhecimento pela Fundação Palmares, certificando que a
Comunidade de São José da Serra é remanescente de quilombos. No dia 20 de
novembro de 2009, os moradores do quilombo conquistaram o título das terras da
fazenda, porém a lentidão do Estado na garantia deste e de outros direitos
constitucionais só possibilitou a posse efetiva das terras em abril de 2015. O
território possui 31 famílias descendentes de escravos, distribuídas em 476
hectares.
O jongo de São José da
Serra tem sido uma importante ferramenta na difusão e na afirmação da sua identidade
afro-brasileira. A partir dela os moradores têm feito palestras em escolas e
recebido visitas no quilombo como forma de reforçar a luta da comunidade negra
pelos seus direitos. Ao reforçarem sua identidade como originários de famílias
de escravos Bantu, vasto grupo linguístico e cultural da África Central,
compartilham uma série de valores que englobam a interação constante entre dois
mundos: de um lado, o dos vivos, e de outro, e o das entidades, guias ou
espíritos, que influenciam os destinos dos vivos.
Este sentimento de interação entre os mundos é expresso de forma intensa por meio da prática do Jongo - ritmo que, desde a chegada de escravizados africanos em terras fluminenses, demarca o patrimônio cultural e religioso de seus descendentes. Segundo estudos, a comunidade de São José da Serra é um dos seus berços no Brasil. Jongo (o canto), aliado ao caxambu (a dança), representa o ápice das festas do “13 de Maio”, dos dias dos santos católicos de devoção da comunidade, das festas juninas, dos eventos familiares especiais e das apresentações públicas, como é o Encontro de Jongueiros, realizado anualmente.
“A força do quilombo mesmo é o negro, a união e o jongo. E o jongo é o início, o meio e a permanência. Eu não vou dizer fim não, é a permanência, porque tudo que gira em torno do quilombo gira em torno do jongo”, afirmou Toninho Canecão. “Hoje no quilombo, antes de ser batizada na igreja, a criança é batizada na roda de jongo. Então, a gente tem muito respeito com o jongo”, completou.”
“Zumbi sempre será
lembrado, a lembrança dele é tão forte que nem aparecem essas pessoas do contra.”
“As nossas maiores
demandas são os títulos dos territórios de quilombos e o reconhecimento de outras
terras maiores.”
“A bandeira de luta dos
quilombos é garantir a chegada de recursos nas comunidades.”
“A publicação na rede social sempre mostra o
lado da moeda que fica para baixo e atualmente a internet está ao alcance de
todos. Hoje (a consciência sobre o racismo) tá melhor que ontem, um dia a gente
chega lá. “
“Sérgio Camargo é um
inútil. Ele conseguiu se isolar dentro de uma grande casa que é a Fundação
Palmares.”
“Espero que alguém
comprometido com a nossa luta se lance a candidata ou candidato. A gente não
perde a esperança. A nossa hora vai chegar.”
Fotos: divulgação ACQUILERJ
Fontes: coalizaonegrapordireitos.org.br; fase.org.br;
oxfam.org.b; ceert.org.br; cpisp.org.br; kn.org.br
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